Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
(…)Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,
Que nem são países, nem momentos, nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Umedece interiormente o instante lento e longínquo!Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar …Álvaro de Campos – Dois Exertos de Odes
Para a grande maioria das pessoas ir ao cinema é uma coisa natural, ou seja, trata-se de um ritual cômodo, asséptico, seguro e iluminado, proporcionado pela estrutura dos shopping centers espalhados pela cidade, onde as salas multiplex dispõem de todo um aparato tecnológico, dentre os quais podemos destacar a tecnologia 3D digital. A programação dessa estrutura megalomaníaca reflete a hegemonia hollywoodiana através de seus filmes de fácil digestão e que acabam por subestimar a sensibilidade e inteligência do espectador, onde todo e qualquer conflito geralmente é solucionado no próprio filme, sem proporcionar, assim, uma reflexão posterior, que o perturbe com questionamentos sobre a realidade. Diante disso, é evidente a banalidade desse tipo de experiência desprovida de sentido.
Contudo, há uma contrapartida. Um mundo destoante onde, se, existe alguma luz, esta é obtusa cedendo seu domínio às sombras com seus contornos indefinidos a se projetarem através das ruas centrais onde a noite é recebida com uma terrível alegria por personagens alegóricos como os mendigos, os drogados, as prostitutas, os michês e os ladrões; a imprimirem na atmosfera um clima periclitante. É nesse universo que está situado o cineclube ‘Filmes Malditos da Meia Noite’ em atividade no Cine Majestik, Rua Major Facundo, Centro. No último sábado de cada mês sempre à meia noite, o ‘Filmes Malditos’ exibe filmes de temáticas transgressoras, experimentais e ultrajantes, indo na contramão do óbvio e apresentando outra proposta aos espectadores mais curiosos e determinados a enfrentarem essa longa jornada noite adentro, pois são exibidos de três a quatro filmes por sessão que termina somente ao alvorecer.
Logo percebemos que estamos diante de uma experiência completamente diferente do que normalmente se compreende por ‘ir ao cinema’, no que tange a questão do significado. Começando pelo Cine Majestik, que goza de uma má reputação desde suas origens. É um fato bastante curioso da história de Fortaleza a inauguração do Cine Teatro Majestic (com “c” no final) Palace no dia 14 de julho de 1917, funcionando na Rua Major Facundo, Praça do Ferreira. Pois além de contar com um bar em sua estrutura física, a principal atração do evento de inauguração foi a transformista italiana Fátima Miris, que causou grande estranhamento e furor à sociedade cearense da época. Outro fato marcante em relação ao cinema foram os incêndios ocorridos em suas instalações em 1955 e em 1968, sendo que esse último levou ao fechamento definitivo da sala.
O Majestik (com “k” no final) que conhecemos hoje é outro cinema, que utiliza o mesmo nome como referência, por também estar localizado na Rua Major Facundo, Centro. Entretanto, trata-se de um cine clube especializado em exibir filmes pornográficos cujo público é essencialmente masculino. Invocando dessa forma, um ambiente que remete às exibições das primeiras décadas do cinema onde as salas de exibição tendiam a se converter num ambiente de prostituição e bebedeira. É trivial para os espectadores freqüentarem o Majestik à procura de sexo casual e anônimo, a própria estrutura da sala se configura em torno dessa premissa. Há no segundo piso um bar com um mini palco para a apresentação de performances de strip tease e sexo ao vivo, muitas vezes com a interação dos espectadores, e, cabines prive para a prática de sexo. Fatores que não deixam de remeter aos Vaudevilles, ao burlesco com sua estética de mostração. Assim, temos a oportunidade de constatar em nossos dias hipermodernos ávidos por tecnologia e interatividade camadas sobrepostas de outros tempos atualizadas por uma atenção presente onde ainda a magia persiste, mesmo sob a égide do maldito.
Para chegar ao Majestik em dia de ‘Malditos’ é preciso sair de nossa zona de conforto e segurança para adentrar a noite do centro com todos os seus perigos e personagens; é como se estivéssemos diante no universo imagético de fotógrafos como Artget, Brassaï e Diane Arbus que conseguiram traduzir em imagens essa atmosfera decadente que pode ser encontrada tanto na paisagem, quanto nos tipos e rostos que facilmente podemos encontrar nessa jornada obscura rumo a uma experiência cinematográfica pregnante de sentido e que chega a se materializar para os que conseguem chegar ao final da sessão, pois esses espectadores recebem o pôster da edição, criado especialmente para o evento.
Assim, em se tratando da experiência do cinema, temos um contraponto diante do que parece já estar de antemão estabelecido. É um movimento de resistência que celebra a alegria da diferença num tempo onde todos parecem iguais, e as experiências são padronizadas. É a alegria do maldito, aquele que tem má índole, do que é cruel e perverso. Contudo, ai também existe a beleza… É preciso apenas desenvolver o olhar, ou seja, despir-se de preconceitos e penetrar o inexplorado. É como cantava Cazuza: “nadando contra a corrente só para exercitar todo músculo que sente. Estamos meu bem por um triz, pro dia nascer feliz…”